quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

SOLOS, UMA PARÁBOLA - JÚLIO ZANOTTA VIEIRA

O teatro sempre está numa encruzilhada e são poucas as montagens que pegaram o caminho certo e menos ainda as que esperaram a meianoite para ver se conseguiam um encontro com o Cara. Um encontro destes é difícil, às vezes é preciso apostar a vida para conseguir uma hora na agenda do Maligno. Os grupos que apostaram e encontraram o Rei das Trevas ou foram varridos para o fundo dos oceanos ou obtiveram um salvo conduto para atravessar o Vale de Lágrimas. Os que afundaram no oceano, sumiram ou chegaram à praia transformados em espuma. Os que encararam a travessia do Vale de Lágrimas ou venderam seu corpo para chegar ao Outro Lado, ou venderam sua alma.
Cabem numa mão os espetáculos que chegaram ao Outro Lado.
Talvez tenham encontrado Dionísio e A Origem da Tragédia, talvez São João e o Apocalipse.
Vamos supor que apenas dois espetáculos chegaram ao Outro Lado.
Um vendeu sua alma e quando chegou era apenas um corpo descarnado. O outro vendeu seu corpo e quando chegou era apenas uma alma errante.
No Outro Lado eles começaram um diálogo, que foi mais o menos o seguinte:
CORPO DESCARNADO _ Oi, tudo bem.
ALMA ERRANTE _ Tudo bem, e aí?
CORPO DESCARNADO _ As coisas estão difíceis, né?
ALMA ERRANTE _ Já estiveram piores, lembra como era antes?
CORPO DESCARNADO _ Antes do que?
ALMA ERRANTE _ Antes de entrarmos nesta.
CORPO DESCARNADO _ Esta é a única coisa que faz sentido, a única coisa pela qual sou capaz de tudo.
ALMA ERRANTE _ Estou vendo. Ao chegar ao Vale te prostituístes...
CORPO DESCARNADO _ Não havia outro jeito de continuar... Mas muito pior foi tu, que traístes o que acreditavas.
ALMA ERRANTE _ Não é fácil atravessar o Vale de Lágrimas.
CORPO DESCARNADO _ A gente atravessa, mas a que preço!
ALMA ERRANTE _ Nem me diga, eu é que sei!
Nisto, eles saíram a um descampado onde havia uma árvore retorcida pelo vento e um amontoado de entulho. Havia ali uma galera tentando sobreviver, tentando dizer alguma coisa. Era um grupo de teatro.
CORPO DESCARNADO _ Veja. Eles estão interpretando um texto de Eurípedes. Mas não tem alma.
ALMA ERRANTE _ E agora, isto é Shakespeare. Mas falta corpo.
Havia um músico tocando fagote e outro na percussão. De um lado galpões abandonados, do outro uma Usina reciclada. Um ventinho frio vinha do rio. Ah! Então este grupo acha que é moleza?
O Corpo Descarnado se propôs ajudar.
CORPO DESCARNADO _ Vou emprestar pra eles meu corpo.
A Alma Errante também ficou a fim de dar uma força.
ALMA ERRANTE _ E eu vou emprestar pra eles minha alma.
Os dois se aproximaram e sentaram na arquibancada. Mas tiveram uma surpresa. Em cena, um Corpo Descarnado estava possuído por uma alma errante. E um coro de Almas Errantes formava um corpo descarnado.
Júlio Zanotta Vieira é dramaturgo.

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